13/jan

Mortes e lama: até quando, Minas?

Tragédias no Brasil são quase sempre pré-anunciadas. É como se pertencessem e integrassem a política de cotas. Sim, há cotas também para o barro e a lama. Cota para a dor.

O paradoxo do binarismo ação e omissão. Bem e mal. Dezembro e Janeiro. Chuva e desabamento. Sei e não faço nada se repete na simbologia social e cultural que camufla as responsabilidades.

Paira no ar uma elevada dose de omissão. Quando a barragem de Mariana se rompeu, em 2015, não era a intuição das pessoas que dizia que ela ia se romper. Era a técnica. A ciência. No caso, a engenharia já havia apontado para a amplitude do risco.

Infelizmente o mesmo aconteceu agora. No último dia 8, o dique da Mina de Pau Branco, que fica em Nova Lima (MG), transbordou inundando a BR- 040 causando danos irreparáveis à população. Mortes. No mesmo dia, o desabamento de pedras no lago de Furnas, em Capitólio, provocou a dor e a morte de 10 pessoas e, mais de 30 ficaram feridas. Mais mortes.

A tragédia ocorrida em Capitólio, e a mineração desmedida que ocorre em Minas decorre de uma tendência, verdadeira pulsão conhecida: a destruição do homem pelo próprio homem, que atua, pelo menos em tese, com falta de cuidado com o próximo. Bem Maquiavel? Cabe-nos responder.

O Estado de Minas Gerais tem lutado com uma absurda capacidade de resiliência para contornar esses malfeitos. Faz-se o dobro de esforço para conseguir pela metade a vida, o sono e a paz.

Mas esforços não são suficientes depois que a morte operou, em razão das chuvas de Janeiro. Não se pode dar um alvará para os fatos ocorridos, como se pertencessem somente à natureza. Licenciar a tragédia opera para muito além da vontade natural.

Há aqui a marca identitária da culpa, quem sabe dolo do homem e não do natural.

A adesão das comunidades ao sofrimento e os esforços unidos de reparação, é uma associação que revela explicitamente, que muito embora o homem possa ser o lobo do homem, também pode ser, primariamente, seu salvador.

Vários testemunhos indicam a determinação e protagonismo na acolhida das vítimas. De pão a colchão, tudo tem feito o povo.

Fica claro que a chuva não é a única culpada – as tragédias, ditas ambientais se repetem. Os fatos naturais atuam pela voz do homem, como seus álibis. O homem tenta assim se eximir, sair da esfera do poder.

Primo Levi ao ser aprisionado nos campos de concentração de Auschwitz, conversou com outra vítima, sendo esse, um médico polonês que também estava preso. O médico-vítima sabia que iria para a câmara de gás e Levi então, sem compreender, perguntou-o, muito triste: “Por quê, por quê, Rudolph?”. E recebeu a seguinte resposta: “Aqui não há porquê (hier ist kein warum)”. Para alguns fatos não há mesmo. O holocausto segue sua trilha injusta.

Para Bauman, os Estados democráticos sempre se ajustaram em sua promessa e responsabilidade de proteger e zelar pelo bem-estar coletivo, em contrapartida à desgraça individual. Em seu livro Cegueira Moral (2014), Bauman traz à tona a questão da perda da sensibilidade diária em relação ao outro no mundo contemporâneo.

Seja Bauman ou Levi, seja nas minas ou nas pedras, o registro é único: o homem tem uma tendência para a prática do mal e de desresponsabilizar.

O porquê vai sempre nos perseguir. “O que fizemos? Por que isso ocorreu? Por que as pedras e as barragens sinalizaram esses eventos e nada se fez?”

O fato de uma barragem se romper e causar danos a milhares de brasileiros irá se repetir. Minas Gerais irá ser vítima de novos acidentes. De novas pedras. E essa operação sequencial se repetirá até que o homem freie o próprio homem. É somente a partir dessa nova pulsão   -que não nasceu ainda – poderemos dormir, com menos medo da lama e das pedras.

Por Maria Inês Vasconcelos, advogada, pesquisadora, professora universitária, escritora

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