17/mar

Texto de pesquisador causa indignação em Nova Lima e abre debate sobre o racismo

A história do Brasil sempre foi construída a partir da narrativa do colonizador e, em Nova Lima, não foi diferente. A literatura nova-limense enaltece a contribuição cultural dos nossos antepassados europeus enquanto que nossa ascendência africana é relegada a um papel secundário. Essa diferenciação tomou proporções inimagináveis devido à coluna do pesquisador Elmo Gomes, veiculada no dia 11 de março, no jornal Cultura e Comércio. O texto, que abordou a formação étnica nova-limense, causou a indignação dos movimentos sociais por romantizar a exploração sexual sofrida pelas mulheres negras durante a escravidão.

Moradores manifestaram pelas redes sociais exigindo retratação e expondo a indiferença com que a sociedade ainda enxerga o período escravagista e o sofrimento da população negra. O coletivo Timbuctoo divulgou nota de repúdio com o apoio de vários movimentos sociais. No documento, o coletivo denuncia que “a miscigenação retratada no texto é fruto de estupro”, e que “romantizar essas práticas, que resultaram na tal miscigenação, e retratar mulheres negras de maneira sexualizada, se torna ainda mais revoltante na semana em que se comemora o dia da mulher”.

Consonante com os novos tempos em que as luta sociais têm ganhado visibilidade nas redes sociais e têm pautado temas como o racismo, o texto faz um desabafo sobre a situação e ressalta que o movimento está atento e se posicionará diante de qualquer desconstrução da memória negra. “Não mais aceitaremos ou seremos subservientes a uma história inglesa e colonial que nunca foi a nossa”. A militante Nídia Sabino, que já foi coordenadora do Grupo de Estudos de Promoção da Igualdade Racial (GEPIR) em Belo Horizonte e em Betim, relatou choque e incredulidade. “Em pleno ano de 2021 e no mês de março, eu, enquanto mulher negra, ler que minhas antepassadas, que tiveram seus corpos atacados, seus filhos arrancados e obrigadas a amamentar os filhos dos senhores “iluminaram a solidão do forasteiro branco” e que “os pobres catres das taperas dos garimpeiros se aqueciam com o calor sensual das africanas”, me causou repulsa tamanho desrespeito aos crimes sexuais de violência cometidos”, diz.

Falta de iniciativa pública

Narrativas como essa, que setores da sociedade ainda reproduzem sob a ótica da etnia branca poderiam ser evitadas por meio de políticas públicas com ações educativas. No entanto, Nídia Sabino diz que “há tempos” não se vê ações efetivas sobre conscientização contra a discriminação racial. “O que temos aqui são eventos isolados, que pouco ou nada ajudam no empoderamento dos negros e negras dessa cidade”, diz. Segundo ela, o município não tem políticas afirmativas de empregabilidade, de oportunidades de estudo, de cultura e lazer para a periferia. “Eventos como desfile da Beleza Negra e outros não são políticas públicas. Temos grupos culturais e religiosos na cidade, de ancestralidade africana e afrobrasileira que sobrevivem a duras penas, sem visibilidade e portanto, sem nenhum apoio da prefeitura”, desabafa.

Nídia Sabino – Professora

O coletivo Timbuctoo também compartilha a opinião de que o município tem uma atuação limitada na promoção da igualdade racial. “Infelizmente as pessoas da nossa cidade que ocupam os espaços de poder e tomada de decisões dificilmente enxergam a população negra em suas especificidades. Somos a maioria e, nas escolas, não aprendemos sobre a participação do nosso povo na construção dessa cidade” afirma em nota o coletivo.

Outro abismo, segundo o movimento, é que as políticas públicas dificilmente chegam nas áreas periféricas. “Temos crianças que estão em situação de trabalho infantil, de prostituição, famílias em situação de extrema pobreza, ruas sem asfalto, onde o poder público não define um caminho para chegar até lá”. A inclusão de afrodescendentes em cargos públicos de destaque é apontada pelo movimento como mais uma solução para fortalecer as políticas públicas. “A impressão que temos é que o único lugar que temos espaço e voz é a Coordenadoria de Igualdade Racial, porém, para que esse debate avance, negros nova-limenses que têm qualificação e conhecimento devem ocupar os cargos públicos de destaques e de decisões”, finaliza.

Em nota, a Administração Municipal informou que várias ações estão sendo implantadas. O governo já deu início à “conversa com alguns grupos, incluindo o Timbuctoo, guardas de Congado, pessoas transgênero e diversos setores da Prefeitura”. Outra inciativa é a recomposição do Conselho de Promoção da Igualdade Racial. Além destas, o Governo declarou que outras políticas estão sendo implementadas. (Confira a íntegra da nota da Prefeitura com todas as ações no final desta matéria)

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Polêmica abre espaço para discutir o assunto

Se por um lado, a polêmica provocou indignação, por outro, ao ganhar as mídias sociais, ela possibilita dar voz ao movimento negro, suas reivindicações e a necessidade de um novo olhar sobre a história e o racismo dissimulado atualmente. Paralela à indignação, o episódio amplia o debate e a discussão sobre políticas afirmativas. Para Nídia Sabino, “esse movimento de repúdio, que viralizou nas redes sociais, seja nos perfis individuais ou em cartas abertas de coletivos organizados, demonstra que a cidade de Nova Lima jamais será dos ingleses e a invisibilidade histórica do papel dos negros e negras não será mais permitida”, diz. Segundo o coletivo Timbuctoo, a repercussão permite conceber “novas narrativas sob a ótica do negro que também construiu a cidade”. Para eles, a discussão não encontra tanto engajamento fora dos grupos sociais e, por isso , “é necessário que esse debate avance e chegue às demais camadas da população”.

Timbuctoo – Coletivo Negro de Nova Lima

A repercussão do texto ganhou visibilidade com o manifesto de repúdio escrito pelo coletivo Timbuctoo, criado em dezembro do ano passado, mas que já mostra seu poder de mobilização e defesa dos direitos e da promoção da cultura da população negra em Nova Lima. A criação do grupo partiu da iniciativa dos jovens Marina Afonso, Larissa Nazaré e Bruno Peixoto e, hoje, conta com 104 membros. Timbuctoo, que dá nome ao coletivo, “remonta à comunidade de negros que viveram em Nova Lima século XIX, onde se localiza hoje o campo do Bairro Boa Vista”, diz Marina. De acordo com ela, a proposta da organização é a de promover a conscientização do povo negro nova-limense, por meio do resgate de sua história. Dessa forma, possibilitando “a criação de espaços de discussão, trocas de experiência e de afeto, promoção da cultura afro-brasileira e promoção de políticas de igualdade e ação social no município”, explica.

Coordenadoria da Igualdade Racial se manifesta sobre o caso

Na tarde de sexta-feira (12), a Coordenadoria de Políticas pra Promoção da Igualdade Racial divulgou nota no site da Prefeitura de Nova Lima. Veja pelo link.

Dono do jornal lamenta a repercussão

Em nota divulgada pelo whatsapp, Wilson Othero, proprietário do jornal Cultura e Comércio lamentou o desfecho da pesquisa e afirmou que o historiador tem liberdade na produção textual, mas que as suas “palavras podem não ter sido interpretadas como ele gostaria”. Ele afirmou que jamais foi intenção ofender a comunidade negra e reiterou o respeito aos nova-limenses e o compromisso em combater o racismo.

O pesquisador Elmo Gomes foi contatado pela rede social, mas não nos respondeu.

Leia a íntegra da resposta da Prefeitura de Nova Lima sobre ações afirmativas:

“A Prefeitura de Nova Lima informa que tem consciência da necessidade de ações afirmativas e reparativas, de forma estrutural, de modo que a presente gestão não se furta e nem se furtará de cumprir o seu papel. Sobre o artigo publicado na semana passada, em jornal da cidade, o Governo Municipal se posicionou, de forma pública, em comunicado divulgado no site da Prefeitura, no dia 12/03/21, além disso, foi pleiteado um espaço na próxima edição do jornal, trazendo à tona a necessidade de não romantizar um passado em que pessoas foram escravizadas e objetificadas. Sobre a elaboração de políticas públicas, desde que assumiu a Prefeitura, a Gestão Municipal tem tratado a questão com a seriedade e as ações estruturantes que isso exige, tanto interna quanto externamente.

Obviamente, situações complexas não podem ser tratadas com respostas simples e, dentro do que é possível em dois meses e meio de governo, a Administração Municipal tem se movimentado sem parar.  Foi iniciada conversa com alguns grupos, incluindo o Timbuctoo, guardas de Congado, pessoas transgênero e diversos setores da Prefeitura. Além disso, o Governo Municipal vem se pautando pelo Relatório Socioassistencial, elaborado pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Políticas Públicas. Foram apresentados ainda dois projetos de lei que visam atender, prioritariamente, mulheres vulnerabilizadas, seja pelo recorte racial, de gênero, de situação de violência sofrida ou de vulnerabilidade socioeconômica.

Sendo assim, além de pensar e atuar com todas as coordenadorias que representam os grupos vulnerabilizados de forma integrada e constante, a Gestão Municipal segue ouvindo setores internos da Prefeitura e, progressivamente, os grupos sociais organizados, além de também se preocupar com o recorte de vulnerabilidade econômica que é necessário fazer. Está sendo elaborada, ainda, uma consulta pública para poder chegar mesmo a quem não está organizado nos movimentos.

Visando construções permanentes e a aproximação do diálogo com a população, dentro do que o contexto de pandemia permite, uma das ações que já está sendo articulada é a recomposição do Conselho de Promoção da Igualdade Racial, criado em 2012, mas desarticulado com o passar dos anos. O Governo Municipal salienta também a importância da participação da população civil nesse e em todos os conselhos, pois, somente com diálogo e a construção conjunta é possível viabilizar mudanças efetivas para reparar as várias desigualdades sociais presentes na sociedade”.

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